Joël Andrianomearisoa

The Fold

A Prega


O espaço da nossa vida não é nem contínuo, nem infinito, nem homogéneo, nem isotrópico. Saberemos precisamente onde se quebra, onde se curva, onde se desconecta e onde se junta? Sentem-se confusamente fissuras, hiatos, pontos de fricção, tem-se por vezes a vaga impressão de que se fecha em qualquer lado, ou que explode, ou que esbarra.


Georges Perec, Espèces d’espaces


Joël Adrianomearisoa (Madagáscar, 1977) desenvolve um trabalho plástico no fino limbo entre as referências pessoais, as remissões para a situação política e social de Madagáscar, uma determinada antropologia do espaço urbano e uma poética háptica que se cruzam de forma indiscernível. Se o primeiro destes tópicos é sempre indexado à sua autobiografia e, portanto, requer uma determinada discrição que é inerente à sua poética, as questões antropológicas, espaciais e hápticas podem ser objecto de alguma reflexão.

A temática da antropologia do espaço possui uma tradição no ocidente que, de certa forma, se opõe à história da arquitectura como foi desenvolvida a partir da imagem (e Adrianoamerisoa é arquitecto de formação e, portanto, familiar a estas questões), particularmente patente na visão da espacialidade que foi desenvolvida, logo no início do século XX por Paul Frankl (Princípios de História da Arquitectura: as Quatro Fases do Estilo, de 1914) , na qual o espaço é, sobretudo, objecto de uma percepção óptica, posição continuada por Siegfried Gideon em Espaço, Tempo e Arquitetura, de 1941. Trata-se de uma concepção do espaço vinculada à percepção visual – o espaço como imagem -- que não é tributária do corpo que o instaura, na medida em que é pela visão que o espaço é percebido e, portanto, o espaço é um dado que é percebido por um sujeito. A questão do espaço como um constructo veio a definir-se, nomeadamente a partir de Henri Lefèbvre, como a criação de espaços de representação, sendo o espaço sempre uma secreção do sujeito – entendido como sujeito individual ou formação social. É sobre esta possibilidade que se exerce a obra de Joël Adrianoamerisoa, na medida em que as situações escultóricas ou imagéticas que cria – e que não se limitam à sua condição objectual – são sempre votadas a uma construção perceptual que implica o tacto – ou a sua expectativa. É a partir dessa hapticidade que Adrianoamerisoa abre ao espectador um leque de possibilidades de geração de intensidades. A este respeito vale a pena referir a forma como Gilles Deleuze (em Diferença e Repetição) refere que o grande ausente na formulação do espaço racionalista e euclidiano é a noção de intensidade, só possível pela repetição.

O conjunto de obras que Adrianoamerisoa agora apresenta são declinações, sob várias formas, das possibilidades de construção de espacialidades que, oriundas de um processo de repetição, instauram as várias declinações do espaço anisotrópico que é o espaço vivido. De facto, o conjunto de peças de grande dimensão, a que se junta uma obra sonora – e a utilização de som reforça a componente eminentemente espacial do projecto --, propõe em simultâneo uma intensidade assente sobre a repetição, bem como uma hapticidade que deriva da enorme sofisticação sensível da criteriosa escolha dos materiais, do seu acromatismo e da sua compulsão ao tacto.

A peça Waiting for the seventh day that will bring us together in the first hours of the night , de 2011, é um conjunto escultórico em 21 elementos que ocupa a parede e realiza a tensão entre o material (papel), a sua leveza e quase imponderabilidade e a massividade gerada pela repetição – de conjuntos de folhas --, propondo-se como uma antinomia entre a repetição, o peso e a leveza, de certa forma instaurando a intersticialidade como o mote que acompanha todo o projecto expositivo.

O aumento de densidade das duas componentes de Labyrinths of Passion Act IV e VI, 2016, introduz a intensidade barroca no sentido da dobra, da prega e, mais uma vez, reforçando a inevitabilidade de construção da espacialidade a partir do seu negativo, do espaço que fica entre, e que gera a noção de intensidade que é, também possibilitada pela escala do trabalho – uma monumentalidade que, no entanto, assenta sobre a delicadeza da manufactura, do papel de seda reunido em fólios que constroem a sua densidade.

A obra sonora Somewhere Over the Rainbow, 2018, propõe um palimpsesto sonoro que junta fragmentos de sons urbanos e da poesia de Jean Joseph Rabearivelo (o poeta de Madagáscar prematuramente falecido em 1937 que Sehghor considerava o primeiro modernista africano) e canções da sua memória pessoal, de certa forma repetindo a metodologia de acumulação em camadas de diferentes níveis perceptuais e semânticos presente nas obras anteriores. Por outro lado, a utilização de som explicita a hapticidade espacial do projecto, estabelecendo uma poética do espaço a partir da sua emocionalidade e contribuído assim para a intensidade que é proposta, ao mesmo tempo que acrescenta um nível político – no contraste entre a escolha camp do título da famosa canção (Over the Rainbow) cantada por Judy Garland em O Feiticeiro de Oz e a situação social de Madagáscar.

É esta possibilidade de, a partir de vários planos de proposta simultaneamente estética (no sentido do seu apelo a uma cognição movida sensorialmente), espacialmente háptica e orientada por uma poética oriunda de uma antropologia individual, que se afirma a quarta característica do seu trabalho, a persistência da liminaridade. A noção de liminal space é oriunda da antropologia e resulta da forma como Victor Turner apropriou o carácter intersticial dos ritos de passagem teorizados por Arnold Von Gennep. Victor Turner veio a concentrar a sua obra tardia nesta temática, sobretudo a partir da natureza performativa das condições intersticiais, nomeadamente em termos sociais, vindo a defender como esta condição – a do “entre” e da forma como esta condição fluida implica uma performatividade própria – são o fim da noção moderna de espaço perspetívico. O espaço performativo da liminaridade e a sua potencialidade poética seriam o campo da pós-modernidade na medida em que se referem a condições humanas, sociais, identitárias ou meramente subjectivas que não são redutíveis a condições, mas a estados fluidos.

É sobre esta condição fluida e negociada que se estabelece a obra de Joël Adrianoamerisoa, no interior da densidade das suas composições de materiais frágeis, na intensidade do negro, no interior das pregas barrocas que produzem as diferentes espessuras do espaço que propõe. Como perguntava Perec sobre a vida, “Saberemos precisamente onde se quebra, onde se curva, onde se desconecta e onde se junta?”

Creio que não, mas essa incerteza é a sua natureza.

Delfim Sardo. 2018